Fazer uma crítica sobre um livro de Neil Gaiman é sempre um risco.
Estragar as surpresas da leitura é um pecado. Só não é um pecado maior do que fazer uma crítica genérica demais e inútil. Bom, tal e qual um personagem de Gaiman, percebo agora que já estou na situação que eu pretendia evitar e não tem mais volta.
Então vamos falar de Deuses Americanos.
Muita gente considera este livro o romance mais ambicioso de Gaiman. Ele parece mesmo ter sido uma ponte para um novo público – o americano. Gaiman mergulhou fundo na cultura americana mais pura, mais ancestral, mais acessível a todos e tirou dela uma aventura única. A América é observada em seu todo – presente e passado, interior e cidade grande. Gaiman fez questão de incluir em sua narrativa toda a diversidade que forma a cultura americana. Claro que não dá para cobrir tudo, ainda mais quando o autor não é americano.
Confesso que gosto muito mais de Neil Gaiman quando ele se mantém em um território familiar a ele. Deuses Americanos tem um “sotaque de turista” em sua narrativa. Claro que Gaiman continua brilhante. Um autor tão competente na narrativa de quadrinhos não nos desaponta na dinâmica dos diálogos. Os acontecimentos vão sendo narrados como um filme. Gaiman não peca na ambientação nem na narrativa. Ele parece saber o tempo mínimo e certo para preparar o cenário em nossa imaginação. O resto flui muito naturalmente. Mas o “sotaque de turista” continua lá. As descrições do livro talvez não agradem a quem não tem alma de mochileiro. O livro provavelmente saiu de algum diário de viagem. Está claro que Gaiman andou um bocado pelas estradas americanas até se sentir seguro de seu material. Mas ele descobriu algo mais. Ele descobriu os verdadeiros templos da América, os solos sagrados e... seus deuses – e estes estão muito longe do óbvio.
A grande qualidade de um livro de Neil Gaiman é que ele sempre vai mais fundo do que se espera, e descobre pontos de vista bastante originais. Sua visão é única e sua imaginação não tem limites. As situações são tão originais e tão únicas que acabam por prejudicar a compreensão do texto. Os deuses se manifestam em várias formas de acordo com a situação e muitas vezes não dá para acompanhar o que Gaiman está descrevendo sem voltar algumas páginas e recompor o cenário. Dá pra imaginar a situação se o livro fosse traduzido em quadrinhos. O desenhista ligaria desesperado para Gaiman procurando referências para o que precisa desenhar: “Como assim o deus-elefante veio montado em um rato e depois abriu as quatro mãos?”
Este livro é uma viagem em mais de uma maneira. Os personagens são muitos e são encontrados em diferentes lugares e épocas da América. Eles são apresentados, desenvolvidos e abandonados sem a menor misericórdia. Os cenários possuem muitos detalhes e todos eles são importantes para a ambientação. É fácil se perder em Deuses Americanos, assim como é fácil se perder na América. Mas não esqueçam, os leitores de Gaiman, que ele é o mestre tecelão e não deixa fio solto. Espere até o final do livro e você vai ver que nada gratuito – Nem a introdução do autor.
Apesar do sucesso nos Estados Unidos, eu não recomendo que este seja seu primeiro livro de Neil Gaiman. E nem recomendo que você leia algum livro de Gaiman se você não sonha. Ele ainda é o autor de Sandman. Ele ainda caminha pelo Sonhar esculpindo imagens perfeitamente reconhecíveis – para quem sonha, dormindo ou acordado.
OS PERSONAGENS: A tradução em português manteve os nomes originais em inglês. Isso facilita a compreensão, mas estraga um pouco da construção dos personagens. Muitos dos nomes são trocadilhos, ou charadas. Tomara que esta seja a sua primeira crítica antes de ler o livro. Há surpresas interessantes nas primeiras páginas. Não leia a contracapa ou as orelhas antes de começar a ler o livro. Vale a pena ficar tão perdido quanto o personagem principal desde o começo.
Shadow: Muito calado e reservado, ele passou os últimos três anos na cadeia e está contando os minutos para voltar para casa. Muitas vezes imaginamos maus agouros quando estamos perto de alcançar um desejo muito forte. Shadow está tendo arrepios nestes últimos dias na prisão. Um dos outros prisioneiros, um homem que parece saber de muita coisa, avisa que a tempestade está chegando. E ela vai ser forte. Para um personagem principal Shadow tem poucas opiniões e raramente expõe alguma. De certa forma ele deixa o caminho livre para o leitor tirar as próprias conclusões. Por outro lado o jeito lacônico de Shadow pode deixar o leitor um pouco perdido.
Wednesday: Ele tem um plano. E este não é o tipo de homem ao qual se diz “não”. De algum modo ele sempre consegue o que quer. É dono de um imenso carisma, mas qualquer um que tenha um pingo de sensibilidade percebe o perigo por trás do seu sorriso. É um homem que mistura o sorriso com um ameaçador ranger de dentes. Em certo momento do livro ele parece simplesmente tomar posse de Shadow.
Laura: Esposa de Shadow. Ela mantém a cumplicidade com o marido além do que qualquer um julgaria possível, mesmo com suas falhas.
Mad Sweeney: Um sujeito enorme, beberrão, irresponsável, de pavio curto, louco por brigas com imensos poderes e responsabilidades.
Sr. Nancy: Um velho conhecido de Wednesday. É um senhor divertidíssimo de bigode fino e chapéu de feltro. Sr. Nancy mora na Flórida e usa as expressões mais peculiares e engraçadas do livro. A maioria delas é usada para criticar os outros, principalmente Shadow.
Czernobog: Outro velho amigo de Wednesday. Com forte sotaque russo (pelo que pode ser notado a princípio) este senhor teve uma ocupação violenta no passado. Ele trabalhava em uma espécie de matadouro e especializou-se em usar seu martelo para dar uma morte instantânea de forma que os pobres animais não sofressem muito. Sua destreza em causar mortes instantâneas não deixa de causar preocupação a Shadow.
Existem muitos outros personagens. Não me atrevo a citar mais nenhum. Deuses Americanos traz muitas surpresas agradáveis, outras nem tanto. A melhor maneira de ler este livro é manter a mente aberta e os ouvidos atentos aos trovões. A tempestade está chegando.
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